Recebi de um amigo e quero compartilhar com toda a nossa
galera, vale a pena ler a entrevista é riquíssima.
A África também é aqui
por Redação
Para
Ana Lúcia Silva Souza, a história da África já está dentro da sala de
aula, nas músicas, nas linguagens. Faltam, agora, material adequado e
professores mais bem preparados
Passados
seis anos desde a aprovação da lei que tornou obrigatório o ensino da
história e da cultura afro-brasileira no currículo oficial das escolas
de nível fundamental e médio, ainda são grandes as limitações na
formação de professores, gestores e outros profissionais da educação e
na oferta de material didático. Assim, o estudo da história da África e
dos africanos, a luta dos negros no Brasil e a cultura negra brasileira
ainda não chegaram a grande parte das escolas públicas e privadas.
Nesta entrevista a Lívia Perozim, a socióloga Ana Lúcia Silva Souza,
pesquisadora de práticas de letramento juvenis no movimento hip-hop e
consultora de projetos na organização não-governamental Ação Educativa,
explica como professores de diferentes áreas podem abordar o tema em
sala de aula, focando, com uma visão menos eurocêntrica e antirracista
da história, a integração dos povos africanos no Brasil, no passado e
no presente.
Carta na Escola: A introdução do ensino de história e cultura afro-brasileira no currículo é uma conquista do movimento negro ou da sociedade em geral?
Ana Lúcia Souza: É uma conquista para a sociedade começar a discutir essa questão. Inegavelmente, essa conquista é fruto de 400 anos de lutas, reivindicações de grupos e movimentos sociais. Todo esse caldo deságua agora em preposições e pressões para que a Lei 10639/03 e outras medidas de ações afirmativas sejam implementadas pelo Estado brasileiro.
CE: O que se agregará ao ensino da história do Brasil?
ALS: Agregará história. Não dá para você pensar na história do Brasil sem pensar na africana e na afro-brasileira. Nós estamos falando de uma mudança na LDB (Lei de Diretrizes Base da Educação Nacional): vamos pensar que os livros didáticos trarão diversos momentos e aspectos de história e cultura afro-brasileira dentro da história do Brasil e não separados dela. Vamos pensar que vamos ter, também, livros específicos de historia da África e da África no Brasil, de outros tempos e de hoje. A partir do momento em que a lei existe, muda a discussão sobre formação e currículo. Está na LDB. Todos os envolvidos com educação terão de estudar a temática para sermos profissionais mais autônomos, assumindo um compromisso com uma educação antirracista no cotidiano.
CE: O que o professor precisará conhecer sobre a história da África?
ALS: Eu sou da área de sociologia e me interessa pensar que a história e a cultura da África estão dentro da sala de aula, nas roupas, nas músicas, nas linguagens. Como é que a gente entende essas estatísticas de mortalidade juvenil negra? A própria mídia já diz: nós sabemos quem morre, onde, a idade, a cor, o sexo. Isso é entender os conflitos, os baixos índices de aproveitamento. As avaliações educacionais denunciam: a população negra avança tanto quanto a população branca em termos de aumento dos anos de escolaridade. Mas ainda há um hiato, uma herança. Todos os índices de educação infantil, fundamental, ensino médio e superior são desfavoráveis à população negra. Não estamos falando de conteúdos pontuais para explicar o racismo, a discriminação e o preconceito. Falamos de reeducação das relações raciais na e para a vida. O trabalho do professor estará quando for selecionar uma imagem ou uma música. É aí que precisamos aprender a potencializar o que alguns professores já sabem fazer, e muitas escolas ainda não.
CE: A senhora poderia explicar melhor esse conceito de cultura afro-brasileira: existe uma cultura brasileira separada da afro-brasileira?
ALS: Existe uma cultura afro-brasileira, singular, que é parte desse processo histórico de construção da cultura brasileira. Um exemplo: é comum ouvir que as famílias pobres e negras são desestruturadas. Isso porque estamos pensando em uma estrutura familiar que vem de uma concepção europeia. Nos arranjos advindos dessas organizações africanas, temos famílias estendidas: pai, mãe, tio. As famílias chegavam estilhaçadas aqui e formavam outros agrupamentos. Isso quer dizer que nesse arranjo familiar você tem a cosmologia africana, os ritos, as formas de rezar, de comer, de cultuar a vida. E isso é processo de uma cultura que se arranja dentro e com outras culturas.
CE: Que aspectos dessa cultura afro-brasileira estão presentes no dia a dia?
ALS: Precisamos desconstruir essa ideia de querer mostrar o que é “contribuição” dos negros na cultura e abordar de maneira crítica, é participação, é influência. A cultura africana influenciou na língua. Como? Se pegarmos algumas palavras que estão relacionadas à alimentação, vamos escolher aquelas que dizem respeito à sobrevivência dessa africanidade. Na comida: abará, acaçá, acarajé, quiabo e inhame estão ligadas à religiosidade de matriz africana. Fica o que significa? Fica o que faz parte da vida das pessoas, circulou no cotidiano e foi recriado. Por que ficam essas palavras e não outras? Isso significa uma forma de resistência dentro desse cotidiano. Outra coisa é essa musicalidade, que é uma maneira, muitas vezes cifrada, de lutar por meio da linguagem. Isso nos obriga a repensar como a gente olha para o axé, o samba, o hip-hop. Minha tese é sobre a linguagem do hip-hop. É através dela que os meninos ensinam o que eles gostam, querem, o que faz sentido para eles. A sala de aula é um lugar de múltiplas identidades.
CE: A participação dos escravos negros em revoltas, como a Balaiada, no Maranhão, a revolta dos Malês, na Bahia, é pouco explorada em sala de aula ou foram levantes de menor importância?
ALS: Tivemos um projeto político, que passa pela escola, de construção de uma nação que trabalhou muito para embranquecer a história Os materiais didáticos fazem parte desse projeto. Aumentam o espaço, mas não mudam a abordagem, que precisa, necessariamente, ser mais crítica.
CE: Isso está mudando? Já há uma produção maior de livros didáticos sobre a história da África e dos africanos no Brasil?
ALS: A história começa a ser recontada. Há novos materiais, mas ainda com pouca circulação e baixa escala. Há algumas editoras especializadas e estudiosos do tema cujo foco são materiais de referência para o professor, mas ainda não são materiais didáticos. O Programa Nacional do Livro Didático do MEC tem a tarefa de incorporar essa discussão para todas as áreas. Se na sala de aula o livro didático ainda é soberano, temos de fortalecê-lo.
CE: Já existem boas fontes de pesquisa para professores nessa área?
ALS: Sim, existem. Há que se procurar. Talvez a área do ensino médio esteja mais enfraquecida nesse sentido e tenha a menor quantidade de livros didáticos.
CE: Episódios que envolveram quilombos serão mais abordados nos materiais?
ALS: Eles têm de abordar. Ou então a gente está brincando de fazer política pública. Precisamos colocar em evidência os mecanismos de pressão e monitoramento do Estado.
CE: O Quilombo dos Palmares opôs a mais longa e forte resistência ao poder colonial. Qual era a estratégia dos líderes para enfrentar as forças do governo?
ALS: Sabe-se hoje que eles tinham em Palmares barricada, trincheira, oficinas, conselhos deliberativos, plantações. Toda uma história que conhecemos pouco. Era uma organização intencional, um conglomerado. Zumbi nasceu em Palmares, foi sequestrado de lá e entregue a um padre. Alfabetizado, ele volta para Palmares aos 15 anos e troca de nome. De Palmares ele volta para Palmares. Quantas dezenas de revoltas eles resistiram até cair?
CE: Os professores estão preparados para aplicar esse conteúdo? Se não, quanto tempo levará para que se forme esse quadro docente?
ALS: Os professores não estão preparados, mas, de qualquer forma, a formação inicial e continuada de professores é fundamental. Para além das ações individuais, é política pública, como as que estão no Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. O trabalho em torno da lei é coletivo e diz respeito a diversos atores e instâncias sociais e políticas. Para além da sala de aula , precisamos saber a quantas andam as verbas, as instâncias de gestão e de participação.
Carta na Escola: A introdução do ensino de história e cultura afro-brasileira no currículo é uma conquista do movimento negro ou da sociedade em geral?
Ana Lúcia Souza: É uma conquista para a sociedade começar a discutir essa questão. Inegavelmente, essa conquista é fruto de 400 anos de lutas, reivindicações de grupos e movimentos sociais. Todo esse caldo deságua agora em preposições e pressões para que a Lei 10639/03 e outras medidas de ações afirmativas sejam implementadas pelo Estado brasileiro.
CE: O que se agregará ao ensino da história do Brasil?
ALS: Agregará história. Não dá para você pensar na história do Brasil sem pensar na africana e na afro-brasileira. Nós estamos falando de uma mudança na LDB (Lei de Diretrizes Base da Educação Nacional): vamos pensar que os livros didáticos trarão diversos momentos e aspectos de história e cultura afro-brasileira dentro da história do Brasil e não separados dela. Vamos pensar que vamos ter, também, livros específicos de historia da África e da África no Brasil, de outros tempos e de hoje. A partir do momento em que a lei existe, muda a discussão sobre formação e currículo. Está na LDB. Todos os envolvidos com educação terão de estudar a temática para sermos profissionais mais autônomos, assumindo um compromisso com uma educação antirracista no cotidiano.
CE: O que o professor precisará conhecer sobre a história da África?
ALS: Eu sou da área de sociologia e me interessa pensar que a história e a cultura da África estão dentro da sala de aula, nas roupas, nas músicas, nas linguagens. Como é que a gente entende essas estatísticas de mortalidade juvenil negra? A própria mídia já diz: nós sabemos quem morre, onde, a idade, a cor, o sexo. Isso é entender os conflitos, os baixos índices de aproveitamento. As avaliações educacionais denunciam: a população negra avança tanto quanto a população branca em termos de aumento dos anos de escolaridade. Mas ainda há um hiato, uma herança. Todos os índices de educação infantil, fundamental, ensino médio e superior são desfavoráveis à população negra. Não estamos falando de conteúdos pontuais para explicar o racismo, a discriminação e o preconceito. Falamos de reeducação das relações raciais na e para a vida. O trabalho do professor estará quando for selecionar uma imagem ou uma música. É aí que precisamos aprender a potencializar o que alguns professores já sabem fazer, e muitas escolas ainda não.
CE: A senhora poderia explicar melhor esse conceito de cultura afro-brasileira: existe uma cultura brasileira separada da afro-brasileira?
ALS: Existe uma cultura afro-brasileira, singular, que é parte desse processo histórico de construção da cultura brasileira. Um exemplo: é comum ouvir que as famílias pobres e negras são desestruturadas. Isso porque estamos pensando em uma estrutura familiar que vem de uma concepção europeia. Nos arranjos advindos dessas organizações africanas, temos famílias estendidas: pai, mãe, tio. As famílias chegavam estilhaçadas aqui e formavam outros agrupamentos. Isso quer dizer que nesse arranjo familiar você tem a cosmologia africana, os ritos, as formas de rezar, de comer, de cultuar a vida. E isso é processo de uma cultura que se arranja dentro e com outras culturas.
CE: Que aspectos dessa cultura afro-brasileira estão presentes no dia a dia?
ALS: Precisamos desconstruir essa ideia de querer mostrar o que é “contribuição” dos negros na cultura e abordar de maneira crítica, é participação, é influência. A cultura africana influenciou na língua. Como? Se pegarmos algumas palavras que estão relacionadas à alimentação, vamos escolher aquelas que dizem respeito à sobrevivência dessa africanidade. Na comida: abará, acaçá, acarajé, quiabo e inhame estão ligadas à religiosidade de matriz africana. Fica o que significa? Fica o que faz parte da vida das pessoas, circulou no cotidiano e foi recriado. Por que ficam essas palavras e não outras? Isso significa uma forma de resistência dentro desse cotidiano. Outra coisa é essa musicalidade, que é uma maneira, muitas vezes cifrada, de lutar por meio da linguagem. Isso nos obriga a repensar como a gente olha para o axé, o samba, o hip-hop. Minha tese é sobre a linguagem do hip-hop. É através dela que os meninos ensinam o que eles gostam, querem, o que faz sentido para eles. A sala de aula é um lugar de múltiplas identidades.
CE: A participação dos escravos negros em revoltas, como a Balaiada, no Maranhão, a revolta dos Malês, na Bahia, é pouco explorada em sala de aula ou foram levantes de menor importância?
ALS: Tivemos um projeto político, que passa pela escola, de construção de uma nação que trabalhou muito para embranquecer a história Os materiais didáticos fazem parte desse projeto. Aumentam o espaço, mas não mudam a abordagem, que precisa, necessariamente, ser mais crítica.
CE: Isso está mudando? Já há uma produção maior de livros didáticos sobre a história da África e dos africanos no Brasil?
ALS: A história começa a ser recontada. Há novos materiais, mas ainda com pouca circulação e baixa escala. Há algumas editoras especializadas e estudiosos do tema cujo foco são materiais de referência para o professor, mas ainda não são materiais didáticos. O Programa Nacional do Livro Didático do MEC tem a tarefa de incorporar essa discussão para todas as áreas. Se na sala de aula o livro didático ainda é soberano, temos de fortalecê-lo.
CE: Já existem boas fontes de pesquisa para professores nessa área?
ALS: Sim, existem. Há que se procurar. Talvez a área do ensino médio esteja mais enfraquecida nesse sentido e tenha a menor quantidade de livros didáticos.
CE: Episódios que envolveram quilombos serão mais abordados nos materiais?
ALS: Eles têm de abordar. Ou então a gente está brincando de fazer política pública. Precisamos colocar em evidência os mecanismos de pressão e monitoramento do Estado.
CE: O Quilombo dos Palmares opôs a mais longa e forte resistência ao poder colonial. Qual era a estratégia dos líderes para enfrentar as forças do governo?
ALS: Sabe-se hoje que eles tinham em Palmares barricada, trincheira, oficinas, conselhos deliberativos, plantações. Toda uma história que conhecemos pouco. Era uma organização intencional, um conglomerado. Zumbi nasceu em Palmares, foi sequestrado de lá e entregue a um padre. Alfabetizado, ele volta para Palmares aos 15 anos e troca de nome. De Palmares ele volta para Palmares. Quantas dezenas de revoltas eles resistiram até cair?
CE: Os professores estão preparados para aplicar esse conteúdo? Se não, quanto tempo levará para que se forme esse quadro docente?
ALS: Os professores não estão preparados, mas, de qualquer forma, a formação inicial e continuada de professores é fundamental. Para além das ações individuais, é política pública, como as que estão no Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. O trabalho em torno da lei é coletivo e diz respeito a diversos atores e instâncias sociais e políticas. Para além da sala de aula , precisamos saber a quantas andam as verbas, as instâncias de gestão e de participação.
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