Por Marshall Auerback - de
Washington
It's a new deal
Um assíduo leitor de New Deal 2.0 faz uma aguda questão:
“Há uma questão que nunca consigo responder. Muitos
especialistas dizem que a ideologia neoliberal iniciou nos anos 80 com Reagan,
Thatcher e a Escola de Chicago. Mas sigo sem entender o que tornou possível
esse giro na economia política. Que elementos, que novas forças nos anos 80
podem explicar essa mudança ideológica e as desigualdades que a seguiram?”
Todos esses temas são muito dignos de exploração e eu, quero
dizer desde logo, não posso fazer justiça a eles com uma resposta de duas
linhas. É melhor recomendar o soberbo livro de Yves Smith, Econned. O
livro proporciona uma excelente explicação histórica do modo como algumas
teorias infundadas, mas amplamente aceitas, levaram à execução de políticas que
geraram o atual estado de coisas. Também ilumina a capacidade dessas filosofias
para ressuscitar mesmo quando se acumulam provas conclusivas contra elas.
Documenta não só a crescente degradação dos economistas profissionais
neoclássicos (e sua concomitante tendência a reduzir a soma da experiência
humana a uma série de equações matemáticas), mas também a maneira pela qual
fundações muito bem financiadas subvencionaram universidades e think tanks que,
por sua vez, legitimaram e validaram essas filosofias charlatanescas.
A ideia de que governos democraticamente eleitos devem
servir-se de políticas fiscais discricionárias para contraestabilizar as flutuações
do ciclo do gasto público chegou a ser visto como algo muito próximo ao
socialismo. Os poderes que tomam decisões políticas foram postos gradualmente
nas mãos de um corpo de tecnocratas neoliberais que pontificavam sobre as
limitações dos governos e reforçavam as posições fiscalmente pró-cíclicas, ou
seja: reforçavam a contração discricionária quando os estabilizadores
automáticos levavam a grandes déficits orçamentários como resultado da frágil
demanda não-pública.
Essa mudança em nossas políticas públicas foi acompanhada
por um processo de tomada de controle dos juristas em uma longa marcha através
do poder Judiciário. Foi um esforço patrocinado pelas grandes empresas,
centrado exclusivamente no tema da desregulação, e culminou com um esforço titânico
para revogar as reformas do New Deal, limitar o poder dos sindicatos e
do próprio governo (salvo em matéria de Defesa, cabe assinalar, que organizou
seu próprio e formidável exército de lobistas).
Responder a questão colocada por nosso leitor passa por
reconhecer que este foi um processo que durou décadas e que veio acompanhado de
enormes somas de dinheiro e de vasto exército de forças empresariais, jurídicas
e políticas, empenhado em frustrar qualquer alternativa progressista. O
processo inteiro ocorreu em um período de aproximadamente 40 anos.
Flexibilização da regulação e da supervisão; uma crescente desigualdade que
levou às famílias a se endividar para manter o nível de gasto; cobiça e
exuberância irracional e liquidez global excessiva: todos esses são sintomas do
mesmo problema.
Mas como tudo começou? A análise que o grande economista
Hyman Minsky realizou no final de sua vida é particularmente potente, porque
permite ver essas mudanças a partir de uma vasta perspectiva histórica. Minsky
chamou a situação de saída da II Guerra Mundial de “capitalismo paternalista”.
Ela se caracterizava por um “enorme Tesouro público” (cujo custo equivalia a 5%
do PIB) dotado de um orçamento que oscilava contraciclicamente a fim de
estabilizar a renda, o emprego e os fluxos de lucros; um Banco Central ao
estilo de um “enorme banco” que mantinha baixas as taxas de juros e intervinha
como emprestador último de recursos; uma ampla variedade de garantias estatais
(seguro de depósitos, respaldo público implícito ao grosso das hipotecas);
programas de bem estar social (Seguridade Social, ajuda às famílias com filhos
dependentes, ajuda médica); estreita supervisão e regulação das instituições
financeiras; e um leque de programas públicos para promover a melhoria da renda
e a igualdade de riqueza (tributação progressiva, leis de salário mínimo,
proteção para o trabalho sindicalmente organizado, maior acesso à educação e à
habitação para pessoas de baixa renda).
Além disso, o Estado jogava um papel importante em matéria
de financiamento e refinanciamento (por exemplo, a corporação pública para
financiar a reforma de imóveis e a corporação pública para o crédito destinado
à compra de imóveis) e na criação de um mercado hipotecário moderno para a
compra de imóveis (baseado em um empréstimo de tipo fixo amortizável em 30
anos), sustentado por empresas patrocinadas pelo Estado. Minsky reconheceu
papel desempenhado pela Grande Depressão e pela II Guerra Mundial na criação de
bases para a estabilidade financeira. Nas palavras de Randy Wray:
“A Depressão pulverizou e expulsou o grosso dos ativos e
passivos financeiros: isso permitiu às empresas e às famílias saírem com pouca
dívida privada. O ciclópico gasto público durante a II Guerra Mundial criou
poupança e lucro no setor privado, enchendo os livros de contabilidade com
dívida saneada do Tesouro (60% do PIB, imediatamente depois da II Guerra). A
criação de uma classe média, assim como o baby boom, mantiveram alta a demanda
de consumo e alimentaram um rápido crescimento do gasto público dos estados
federados e dos municípios em infraestrutura e em serviços públicos demandados
pelos consumidores metropolitanos.
A elevada demanda dos entes públicos e dos consumidores
trouxe por sua vez consigo a possibilidade de se cobrir o grosso das
necessidades das empresas para financiar o gasto interno, incluindo os
investimentos. Assim, durante as primeiras décadas que se seguiram à Segunda
Guerra, o capital financeiro desempenhou um papel muito menor. A lembrança da
Grande Depressão gerou relutância em relação ao endividamento. Os sindicatos
pressionavam e, frequentemente, obtinham mais e mais compensações, o que
permitiu o crescimento dos níveis de vida, financiados em sua maior parte
somente com a renda dos trabalhadores.”
Na década de 1970 tudo isso começou a mudar, como é bem
explicado em Econned. O gasto público começou a crescer mais lentamente que o
PIB; os salários ajustados à inflação se estancaram a medida que os sindicatos
perdiam poder; a desigualdade começou a crescer e as taxas de pobreza deixaram
de cair; as taxas de desemprego dispararam; e o crescimento econômico começou a
desacelerar.
Nos anos 70 assistimos também aos primeiros esforços
sustentados para fugir das restrições impostas pelo New Deal, a medida que as
finanças respondiam para aproveitar as oportunidades. Com o desastroso
experimento monetarista de Volcker (1979-82), muitos dos velhos vestígios do
sistema bancário estabelecido pelo New Deal foram arrasados.
O rito de inovações se acelerou a medida que foram se adotando
muitas práticas financeiras novas para proteger as instituições do risco da
taxa de juros. A despeito de todas as apologias feitas sobre os anos de Volcker
a frente da Federal Reserve, o certo é que suas políticas de juros altos
assentaram as bases do atual sistema financeiro baseado no mercado, incluídas a
titulação hipotecária, a inovação financeira na forma de derivativos para
cobrir o risco das taxas de juros, assim como muitos dos veículos financeiros
“extra contábeis” que proliferaram nas duas últimas décadas. Legislou-se para
criar um tratamento fiscal muito mais favorável aos juros, o que, por sua vez,
estimulou as compras alavancadas para substituir ativos por dívida (como a
tomada de controle empresarial financiada com dívida que seria servida pelos
futuros fluxos de receita da empresa assim controlada).
Os excedentes orçamentários dos anos Clinton – outro exemplo
de ascendência de uma filosofia neoliberal que fugiu da política tributária e
determinou a primazia da política monetária – restringiram a demanda agregada,
encolheram as receitas e criaram uma maior dependência da dívida privada como
meio de sustentar o crescimento e as receitas. Esse foi claramente facilitado
por inovações que ampliaram o acesso ao crédito e mudaram os critérios das
empresas e dos lares para definir o nível de endividamento prudente. O consumo
conduzia o timão e a economia voltou finalmente aos rendimentos dos anos 60.
Regressou o crescimento robusto, agora alimentado pelo déficit do gasto
privado, não pelo crescimento do gasto público e da receita privada. Tudo isso
levou ao que Minsky chamou de capitalismo dos gestores do dinheiro.
Esse é o contexto histórico básico que veio se desenvolvendo
nos últimos 40 anos. E essa é, provavelmente, uma resposta que vai mais além do
que nosso amável leitor queria, mas sua questão não é daquelas que possa ser
respondida laconicamente.
Marshall
Auerback é analista econômico, pesquisador do Roosevelt Institute,
colaborador da New Economic Perspectives e da NewDeal 2.0.
Tradução para SinPermiso: Casiopea Altisench
Tradução para Carta Maior: Katarina Peixoto
Enviado
pelo Correio da Cidadania
Nenhum comentário:
Postar um comentário