Paulo Roberto
por Rodrigo Guéron[i]
Em 1968, quando o estudante Édson Luis foi assassinado pela polícia no restaurante Calabouço, um grito correu as ruas do Rio levado pelos seus colegas: “Mataram um estudante, podia ser seu filho!”. Esta palavra de ordem trouxe boa parte da chamada classe média, até então assustada com as passeatas, em apoio ao movimento contra a ditadura que culminou na passeata dos cem mil. Lembrando dos mesmos cem mil descendo a Avenida Rio Branco, Nelson Rodrigues sentenciava: “ninguém era Flamengo”.
Ainda que esta constatação não fosse nem de longe um pretexto para o grande dramaturgo e escritor apoiar a ditadura como apoiou, a frase de Nelson se referia ao que as imagens do movimento deixavam claro: não havia quase nenhum negro nas passeatas de estudantes, intelectuais e artistas do 68 brasileiro.
Em 2007, Camila Pitanga, mulher mestiça que gosta de se apresentar como “negra” (porque deve saber muito bem que não se trata de uma questão “biológica” ), afirmou que a ausência de modelos negras na São Paulo Fashion Week “espelha o racismo existente na sociedade”. De uma generosidade política rara em sua geração de atores, Camila soube fazer repercutir a sua posição na mídia. Talvez até considerasse – ou não – que na verdade o racismo estava na organização do evento: nos seus produtores e estilistas. Mas jamais poderia dizê-lo, não só porque foi convidada por um destes para desfilar, sendo uma das raras exceções de modelos negras, como também poderia ser processada se dissesse isso.
De fato, se a mesma Camila iniciasse um movimento por modelos negras nas passarelas, pela lógica de uma certa antropologia, sociologia, intelectuais e afins, que entregaram um manifesto contra as cotas no STF, a atriz ia ser chamada de “racista”.
Ainda que não seja muito feliz a comparação de universidades com passarelas de moda, a mesma lógica é usada contra um dos mais importantes movimentos sociais do país recentemente, o dos prévestibulares para negros e pobres, como o PVNC e o Educafro, e o resultado prático da ação ao mesmo tempo política e produtiva destes movimentos: alguns milhares de negros e pobres na universidade – os primeiros em toda a história de suas famílias – e uma mobilização dentro destas, desde uma pressão de fora, por uma política de ação afirmativa que já está em cerca de quarenta instituições de ensino superior, sem falar os bolsistas do Prouni, programa que os signatários do manifesto anti cotas agora também atacam.
Segundo esta espécie de categoria “intelectuais oficiais”, ou “intelectuais celebridades” que se criou no Brasil, seriam estes movimentos os responsáveis por uma futura e perigosa introdução do racismo no Brasil. A lógica deste pensamento é a seguinte: quase nenhuma modelo negra, mas quem exigir modelos negras será racista; pouquíssimos estudantes negros, quase nenhum professor, raríssimos médicos, economistas, engenheiros, cientistas, mas quem se mobiliza por um programa de ação afirmativa para reverter esta desigualdade é que é racista.
Mas o que o assassinato do estudante Édson Luís, e os temores das mães de classe média de perder os seus filhos tem com isso? Tudo se ficarmos tanto no tema “assassinato” quanto nos “temores de mãe”; mas agora de muitos jovens, poucos estudantes, quase nenhum universitário: os milhares que morrem por ano nas nossas metrópoles. O Brasil com os recordes mundiais de jovens – na imensa maioria negros e mestiços –, assassinados nas metrópoles.
Assim enquanto alguns destes(as) senhores(as) antropólogos, sociólogos, intelectuais e etc(as) temem a política de cotas, os jovens negros e pobres temem ser assassinados. Relacionarei aqui então, como convém ao debate, alguns dos meus argumentos a favor da política de cotas, como já fiz em outros artigos. Mas não sem antes assinalar que tenho a impressão de não estamos diante de debate algum; mas de uma sofisticadamente perversa estratégia política, um ardiloso jogo de poder do qual os(as) doutores(as) que articularam o manifesto entregue no STF são protagonistas, deslocando-se para a posição de ideólogos de uma violenta máquina de propaganda que dispensa o mínimo de honestidade intelectual. Em outras palavras, esta negação do racismo, e a inversão da acusação, é a própria ação de um poder que produziu, e segue produzindo, uma das sociedades mais desiguais e violentas do mundo.
Esta estratégia consiste em, de um lado, não parar de repetir que “no Brasil o racismo não é o problema”, enquanto de outro a desigualdade constrói, no espaço urbano, no mundo do trabalho e do ensino, a imagem dos negros e dos mestiços como de um “menos”. Temos então um racismo que se manifesta –“fala”– a partir da própria realidade criada, e que começa exatamente ali onde tem alguém dizendo “não somos racistas”, posto que faz parecer o lugar social onde se encontram a maior parte dos brasileiros negros e mestiços como uma espécie de “lugar merecido”, ou “ lugar natural”.
Dizer então que o problema do Brasil não é “racial”, mas “social”, é separar o inseparável. Ao longo de todo o século XX o racismo não parou de produzir exclusão, concentração de renda, pobreza e violência. O cidadão não arrumava emprego, era parado na blitz da polícia, era estigmatizado na escola, era condenado a penas maiores nos tribunais, ou mesmo era considerado culpado a priori, porque era negro. O racismo quando não estava nas falas – e também estava – falava pela maneira como o lugar social dos negros e mestiços era construído: no mundo do trabalho, nos espaços da cidade, nos meios de comunicação, no acesso ao conhecimento.
E é exatamente porque o racismo é uma poderosa força social, que é igualmente falacioso opor à política de cotas o argumento que “a biologia já provou que o conceito de raça não existe”. Ora, o que esta discussão tem a ver com a biologia ou com a genética? As políticas de ação afirmativa buscam desmontar e reverter o racismo e a desigualdade como algo que se construiu social e historicamente. A questão não é raça como conceito biológico, mas a cor da pele e as características físicas como forma de distinção social e como mecanismo de produção de desigualdade, controle e violência.
Assim, as características físicas, a cor da pele dos jovens assassinados nas metrópoles brasileiras dos anos 2000, nos levam ainda uma vez ao assassinato do estudante Édson Luis. Mas desta vez por causa da diferença, e não da semelhança. Lá em 68 os colegas de Édson, revoltados, foram em busca de um prédio público onde velariam o corpo e a partir de onde se espalharia o grande movimento político de resistência à ditadura. Seria então um impressionante espetáculo se os que sobreviveram e resistem ao extermínio diário que há nas favelas e periferias brasileiras, e que esta resistência os levou até os pré vestibulares para negros e carentes e ao movimento pró-cotas, resolvessem fazer algo semelhante com o que o pessoal fez em 68: trazer os seus mortos para algum prédio público. Por exemplo, para o de uma universidade como a UFRJ, que tanto rejeita a política de cotas (embora inúmeros de seus professores tenham assinado o manifesto pró-cotas). Seria uma cena impressionante, um espetáculo hiperrealista: multidões descendo dos morros e da periferia carregando milhares de cadáveres como fizeram com o corpo de Édson. Neste momento, se os mortos falassem, talvez dissessem: “poderíamos estar aí”. Mas é provável que nem assim esta multidão de garotos negros e mestiços fosse comover os que insistem que no Brasil o racismo não é um problema, e que uma política que os distingue pela cor da pele, desta vez para ajudá-los a entrar na universidade, e não para serem vidas matáveis, é que provocaria a violência. Tamanha indiferença aos mortos seria exatamente porque os que sobreviveram jamais poderiam repetir a mesma palavra de ordem dos colegas de Edson Luis em 68; a não ser que gritassem ao pé da janela de nossa cordial antropologia anti-cotas: “Mataram um (não) estudante, porque não podia (e nem parecia) ser seu filho!”.
[i] Filósofo, Professor Adjunto da UERJ, Doutor em Filosofia (Estética e Filosofia da Arte), cineasta e roteirista de cinema e TV, membro da rede universidade nômade.
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