DALMO DALLARI
No dia 8 de maio de 2002, a Folha de
S. Paulo [ http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0805200209.htm ]
publicou o seguinte artigo do professor Dalmo Dallari, a propósito da indicação
de Gilmar Mendes para o Supremo Tribunal Federal, sob o título de Degradação
do Judiciário. Esse artigo vem sendo citado, em parte, para explicar o
desatino de Fernando Henrique Cardoso, e de seu rolo compressor, em fazer
do arrogante advogado membro do mais alto tribunal do país. Vale a pena
reproduzi-lo, em sua íntegra, uma vez que ele é de domínio público, desde que
foi divulgado pelo jornal. Com sua leitura, tudo fica explicado: dos
habeas-corpus mais velozes do que os neutrinos de Genebra em favor de Daniel
Dantas, às mais recentes agressões, desta vez contra os blogueiros da
internet:
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Folha de S. Paulo -
Opinião
São Paulo, quarta-feira, 08 de
maio de 2002
TENDÊNCIAS/DEBATES
SUBSTITUIÇÃO NO STF
SUBSTITUIÇÃO NO STF
Degradação do Judiciário.
Por Dalmo Dallari.
Nenhum Estado moderno pode ser
considerado democrático e civilizado se não tiver um Poder Judiciário
independente e imparcial, que tome por parâmetro máximo a Constituição e que
tenha condições efetivas para impedir arbitrariedades e corrupção, assegurando,
desse modo, os direitos consagrados nos dispositivos
constitucionais.
Sem o respeito aos direitos e aos
órgãos e instituições encarregados de protegê-los, o que resta é a lei do mais
forte, do mais atrevido, do mais astucioso, do mais oportunista, do mais
demagogo, do mais distanciado da ética.
Essas considerações, que apenas
reproduzem e sintetizam o que tem sido afirmado e reafirmado por todos os
teóricos do Estado democrático de Direito, são necessárias e oportunas em face
da notícia de que o presidente da República, com afoiteza e imprudência muito
estranhas, encaminhou ao Senado uma indicação para membro do Supremo Tribunal
Federal, que pode ser considerada verdadeira declaração de guerra do Poder
Executivo federal ao Poder Judiciário, ao Ministério Público, à Ordem dos
Advogados do Brasil e a toda a comunidade jurídica.
Se essa indicação vier a ser aprovada
pelo Senado, não há exagero em afirmar que estarão correndo sério risco a
proteção dos direitos no Brasil, o combate à corrupção e a própria normalidade
constitucional. Por isso é necessário chamar a atenção para alguns fatos graves,
a fim de que o povo e a imprensa fiquem vigilantes e exijam das autoridades o
cumprimento rigoroso e honesto de suas atribuições constitucionais, com a
firmeza e transparência indispensáveis num sistema
democrático.
Segundo vem sendo divulgado por
vários órgãos da imprensa, estaria sendo montada uma grande operação para anular
o Supremo Tribunal Federal, tornando-o completamente submisso ao atual chefe do
Executivo, mesmo depois do término de seu mandato. Um sinal dessa investida
seria a indicação, agora concretizada, do atual advogado-geral da União, Gilmar
Mendes, alto funcionário subordinado ao presidente da República, para a próxima
vaga na Suprema Corte. Além da estranha afoiteza do presidente – pois a
indicação foi noticiada antes que se formalizasse a abertura da vaga -, o nome
indicado está longe de preencher os requisitos necessários para que alguém seja
membro da mais alta corte do país.
É oportuno lembrar que o STF dá a
última palavra sobre a constitucionalidade das leis e dos atos das autoridades
públicas e terá papel fundamental na promoção da responsabilidade do presidente
da República pela prática de ilegalidades e corrupção.
É importante assinalar que aquele
alto funcionário do Executivo especializou-se em “inventar” soluções jurídicas
no interesse do governo. Ele foi assessor muito próximo do ex-presidente Collor,
que nunca se notabilizou pelo respeito ao direito. Já no governoFernando
Henrique, o mesmo dr. Gilmar Mendes, que pertence ao Ministério Público da
União, aparece assessorando o ministro da Justiça Nelson Jobim, na tentativa de
anular a demarcação de áreas indígenas. Alegando inconstitucionalidade, duas
vezes negada pelo STF, “inventaram” uma tese jurídica, que serviu de base para
um decreto do presidente Fernando Henrique revogando o decreto em que se
baseavam as demarcações. Mais recentemente, o advogado-geral da União, derrotado
no Judiciário em outro caso, recomendou aos órgãos da administração que não
cumprissem decisões judiciais.
Medidas desse tipo, propostas e
adotadas por sugestão do advogado-geral da União, muitas vezes eram claramente
inconstitucionais e deram fundamento para a concessão de liminares e decisões de
juízes e tribunais, contra atos de autoridades federais.
Indignado com essas derrotas
judiciais, o dr. Gilmar Mendes fez inúmeros pronunciamentos pela imprensa,
agredindo grosseiramente juízes e tribunais, o que culminou com sua afirmação
textual de que o sistema judiciário brasileiro é um “manicômio
judiciário”.
Obviamente isso ofendeu gravemente a
todos os juízes brasileiros ciosos de sua dignidade, o que ficou claramente
expresso em artigo publicado no “Informe”, veículo de divulgação do Tribunal
Regional Federal da 1ª Região (edição 107, dezembro de 2001). Num texto sereno e
objetivo, significativamente intitulado “Manicômio Judiciário” e assinado pelo
presidente daquele tribunal, observa-se que “não são decisões injustas que
causam a irritação, a iracúndia, a irritabilidade do advogado-geral da União,
mas as decisões contrárias às medidas do Poder Executivo”.
E não faltaram injúrias aos
advogados, pois, na opinião do dr. Gilmar Mendes, toda liminar concedida contra
ato do governo federal é produto de conluio corrupto entre advogados e juízes,
sócios na “indústria de liminares”.
A par desse desrespeito pelas
instituições jurídicas, existe mais um problema ético. Revelou a revista “Época”
(22/4/ 02, pág. 40) que a chefia da Advocacia Geral da União, isso é, o dr.
Gilmar Mendes, pagou R$ 32.400 ao Instituto Brasiliense de Direito Público – do
qual o mesmo dr. Gilmar Mendes é um dos proprietários – para que seus
subordinados lá fizessem cursos. Isso é contrário à ética e à probidade
administrativa, estando muito longe de se enquadrar na “reputação ilibada”,
exigida pelo artigo 101 da Constituição, para que alguém integre o
Supremo.
A comunidade jurídica sabe quem é o
indicado e não pode assistir calada e submissa à consumação dessa escolha
notoriamente inadequada, contribuindo, com sua omissão, para que a arguição
pública do candidato pelo Senado, prevista no artigo 52 da Constituição, seja
apenas uma simulação ou “ação entre amigos”. É assim que se degradam as
instituições e se corrompem os fundamentos da ordem constitucional
democrática.
Dalmo de
Abreu Dallari, 70, advogado, é professor da Faculdade de Direito da USP. Foi
secretário de Negócios do município de São Paulo (administração Luiza
Erundina).
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